Palestra proferida no III Congresso Nacional de Direito Ambiental
“Meio ambiente, informação e conhecimento: a relação com o conceito de soberania”
30 de abril
Senhoras e Senhores, o tema que escolhi para hoje é a relação entre o conceito de soberania e a informação e o conhecimento referentes aos recursos naturais.
Nesta semana, no dia 27 de abril, completamos dez anos da entrada em vigor da Lei da Política Nacional de Educação Ambiental, da qual tive a honra de atuar como relator na Câmara dos Deputados. Essa lei traz uma série de diretrizes norteadoras dos processos educativos, insertos no ensino formal ou não, mediante os quais se intenta construir valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltados a assegurar padrões sustentáveis de desenvolvimento.
São destacados na referida lei, entre outros, os princípios da concepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o socioeconômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade, e a abordagem articulada das questões ambientais locais, regionais, nacionais e globais.
A aplicação da Lei da Política Nacional de Educação Ambiental nas milhares e milhares de escolas espalhadas por nosso gigantesco território tem trazido ganhos concretos quanto à conscientização de nossos jovens.
Tenho certeza de que todos os pais e as mães aqui presentes reconhecerão que seus filhos têm hoje grande preocupação com a conservação dos recursos naturais, e conhecimento acumulado sobre o tema.
Infelizmente, a pressão intensa, de fontes governamentais e empresariais, pela flexibilização da legislação ambiental, marcada por um olhar essencialmente utilitarista e imediatista sobre os recursos naturais, demonstra que ainda temos muito que caminhar no país em termos de educação para o meio ambiente.
Exemplo concreto bem recente ocorreu na inclusão de medidas voltadas a desestruturar os processos de licenciamento ambiental de rodovias na Medida Provisória 452, aprovadas na semana passada na Câmara dos Deputados. Outro exemplo está na forte e permanente campanha contra nossas normas de proteção à flora.
Em face dessa constatação, avalio, Senhoras e Senhores, que nossas crianças estão precisando ensinar os adultos.
“A pergunta que se coloca é: que tipo de desenvolvimento queremos?”
Nossa legislação ambiental, considerada avançada em nível mundial, de repente está reduzida simbolicamente por atores relevantes de nosso cenário político e econômico a mero entrave ao desenvolvimento do Brasil. Abordam-se temas complexos segundo enfoques extremamente simplistas e intenta-se resolver os problemas existentes mediante decisões também simplistas, cujas consequências negativas para todos virão logo.
A pergunta que se coloca é: que tipo de desenvolvimento queremos? Que tipo de desenvolvimento assegurará, realmente, o bem-estar dos brasileiros, da presente e das futuras gerações?
Há outras perguntas conexas: quem realmente ganhará com a expansão do agronegócio na Amazônia, em modelo dissociado da realidade regional? Quem lucrará com a implantação ou asfaltamento de grandes estradas na região ou em outros locais do país, ou com a realização de outros tipos de grandes empreendimentos, sem a garantia de realização prévia dos estudos ambientais necessários?
“Não temos o direito de negar a nossos filhos, e aos filhos de nossos filhos, padrões sustentáveis de desenvolvimento”
Como ex-Ministro do Meio Ambiente, integrante do Partido Verde e militante histórico da causa ambiental, não posso deixar de manifestar minha grande preocupação com o acirramento da pressão pela flexibilização de um conjunto de normas ambientais que vêm sendo construídas com cuidado há décadas.
O retrocesso nesse campo é inaceitável. Não temos o direito de negar a nossos filhos, e aos filhos de nossos filhos, padrões sustentáveis de desenvolvimento.
O retrocesso potencial também está no papel do Brasil como liderança internacional nesse campo, e nesse aspecto, Senhoras e Senhores, coloca-se tópico sem dúvida relacionado ao conceito de soberania.
Desde o processo de organização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada na cidade do Rio de Janeiro em 1992, nosso país assumiu posição de destaque nas principais discussões internacionais associadas, direta ou indiretamente, à temática ambiental. Nossa competência técnica e política, e vontade de lutar por avanços concretos nessa área, são reconhecidas tanto por países do mundo dito desenvolvido quanto pelas nações em desenvolvimento.
Não podemos querer manter esse papel e, ao mesmo tempo, descuidar da aplicação concreta da Política Nacional do Meio Ambiente. Seremos cobrados por isso no plano internacional e, teremos de reconhecer, essa cobrança estará coberta de fundamentos.
A Amazônia, o Pantanal Mato- Grossense, a Mata Atlântica, nosso Cerrado, nossa Caatinga, constituem patrimônio nacional, quer estejam assim explicitados em nossa Constituição Federal quer não estejam. O povo brasileiro é soberano para decidir como usar os recursos naturais existentes nesses biomas. Essa questão não está em debate.
O que se expõe é que, se temos o direito inalienável de estabelecer a disciplina que regula a ocupação desses biomas por atividades humanas, não temos o direito de descuidar de sua proteção.
Em outras palavras, se temos o direito de uso, não estamos liberados para consagrar o abuso.
Não se pode deixar de ponderar que o descontrole no desmatamento da Amazônia, como uma série de outras questões relacionadas à degradação ambiental, atinge não apenas as populações locais, que muitas vezes perdem seus meios de sobrevivência tradicionais, mas apresenta impactos negativos em termos de desequilíbrio ambiental que vão bem além das fronteiras regionais e também nacionais.
Os técnicos apontam que o descontrole sobre a degradação ambiental na Amazônia gerará efeitos no plano mundial, notadamente no que se refere ao regime de chuvas. Internamente, implicará danos perversos sobre o nosso ciclo hídrico e, por decorrência, na própria capacidade de geração de parte de nossas hidrelétricas.
Como nosso país pretende continuar a fazer cobranças dos países altamente industrializados em termos de compromissos relacionados às mudanças climáticas, a exemplo da aceitação de metas concretas quanto à redução da emissão de gases-estufa, se não cuida de sua própria casa?
No que se refere à Amazônia, sempre defendi que a melhor forma de protegê-la é conhecê-la. Na verdade, a lei do “conhecer para poder proteger” corretamente se aplica a todos nossos biomas e também a diferentes campos de nossa vida.
Queixamo-nos com razão da biopirataria praticada por estrangeiros na Amazônia, mas queremos enfrentar esse problema meramente mediante atos de polícia. Esse tipo de atuação é importante, mas nunca será plenamente eficaz.
Além de ser, na prática, inviável, colocar fiscais espalhados por todos os rincões desse país, como não temos pleno conhecimento sequer sobre aquilo que estamos querendo proteger, nossa atuação sempre estará aquém do necessário.
Precisamos de investimentos vultosos em pesquisas relacionadas aos recursos naturais, tanto quanto precisamos do aumento do número de agentes dedicados à fiscalização ambiental.
Estamos em um país megadiverso e não dedicamos nem perto do que seria preciso em termos de esforços para conhecer e proteger nossa biodiversidade. Estações ecológicas, parques nacionais e outras unidades de conservação, grande parte das vezes, são objetos de críticas “no atacado”, sem qualquer consideração sobre sua importância em termos de conhecimento de nossas riquezas.
O conceito de soberania, mesmo em sua acepção mais remota que ainda apresentava vínculo com o “soberano” como autoridade suprema, pelo menos em tese continha determinados limites morais. Que limites eram esses? Os de um governo guiado pela retidão, voltado ao interesse público.
Modernizamos o conceito, afastamos as referências às leis divinas, consolidamos a soberania como poder que nasce do próprio povo, mas não podemos deixar de nos guiar pela retidão e pelo interesse público, e aqui não falo mais em tese. Nessa linha, nossa soberania sobre nosso território e sobre os recursos naturais nele existentes não nos habilita a destruir nossas riquezas naturais.
Cabe enfatizar que, se as condutas irresponsáveis do ponto de vista ambiental são condenáveis no plano moral, são condenáveis também do ponto de vista econômico.
A comunidade científica aponta-nos há muitos anos o valor da biotecnologia em termos de rendimentos para os brasileiros. Quanto estamos perdendo por destruir hábitats de espécies em risco de extinção para a implantação, por exemplo, de atividades agropecuárias em áreas da Amazônia não vocacionadas para esse tipo de atividade?
Há espécies na região com imenso potencial para produção de medicamentos que estão desaparecendo sem ser pesquisadas. A visão imediatista não é inteligente mesmo no aspecto puramente financeiro.
Nos últimos tempos, sentimos no ar uma visão de “Brasil grande” típica do desenvolvimentismo de algumas décadas atrás.
Somos contra o desenvolvimento? De forma alguma, mas queremos um desenvolvimento verdadeiro, comprometido, responsável sob os aspectos social e ambiental.
Cabe dizer que os atores que lutam em prol da causa ambiental reconhecem que algumas normas ambientais podem necessitar de ajustes. Não estou aqui para defender posições sectárias, longe disso.
Deve ser dito, todavia, que o fato de processos de licenciamento ambiental estenderem-se por meses e mesmo anos nos órgãos técnicos relaciona-se não ao excesso de legislação, mas sim à situação de extrema penúria em termos de recursos humanos e materiais que marca historicamente esses órgãos.
Poucas pessoas que não trabalham diretamente com a legislação ambiental sabem disso, mas as licenças ambientais são reguladas em nível federal por apenas um único artigo da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) e por algumas resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). As ditas “simplificações” de nossas normas, na verdade, implicam positivação de uma série de regras de forma casuísta, não sua redução ou eliminação.
Ademais, poucas pessoas que não trabalham diretamente com a política ambiental têm idéia da dimensão dos problemas financeiros enfrentados diuturnamente por nossos gestores ambientais para conseguir implantar unidades de conservação e diversas outras medidas nessa área. Por outro lado, quando esses espaços protegidos são invadidos e degradados, passa-se a imagem equivocada de que o Poder Público não se esforça para mantê-los.
O que nosso país precisa, Senhoras e Senhores, não é de ataques à nossa legislação de proteção aos recursos naturais ou às ações de nossos gestores ambientais.
O que nosso país precisa é de maiores investimentos na proteção ambiental, bem como em pesquisa em ciência e tecnologia nesse campo. Conhecer e cuidar do que é nosso são elementos de nossa soberania.
No lugar de retalharmos as regras que protegem nossos recursos, precisamos implementar, de fato, a Política Nacional do Meio Ambiente. Temos leis exemplares nesse campo: além da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, devemos citar a Lei dos Recursos Hídricos e a já citada Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, entre outras.
Há esforços relevantes na esfera legislativa que merecem ser empreendidos nesse momento, no lugar da aprovação de leis que ferem todo o espírito de nosso direito ambiental.
Explicitamos nosso pleno apoio à aprovação da lei complementar sobre cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios em termos de política ambiental com base no art. 23 da Constituição, da lei de consolidação da legislação ambiental e de normas definitivas disciplinando o acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado. Há outros processos relevantes pendentes, como a Lei da Política Nacional dos Resíduos Sólidos.
Não se podem mais aceitar, contudo, as pressões em prol de retrocessos em nossa legislação ambiental.
Não se podem mais aceitar, igualmente, direcionamento dos recursos financeiros existentes com total desconsideração da importância da política ambiental.
Era essa a mensagem que eu tinha hoje a passar.
Muito obrigado a todos.